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Ogum é São Jorge? Especialistas falam da relação entre as divindades, festejadas nesta terça.


São Jorge é celebrado neste 23 de abril. Ogum, o Orixá do ferro e da guerra, também.

No Rio de Janeiro, fiéis de várias regiões madrugam para homenagear o Santo e o Orixá. Nas alvoradas, os devotos lançam fogos, e igrejas católicas celebram missas logo cedo.

Mas Ogum é São Jorge? Veja abaixo o que dizem estudiosos e religiosos.


Sincretismo religioso

“São divindades diferentes. Ogum é um orixá africano, um homem preto. Porém, no Brasil, a associação entre orixás e santos católicos foi necessária”, diz Preta Lagbara, mãe de santo dirigente do terreiro Ilê Axé Exu eti Ogum, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Para a sacerdotisa, ainda que Ogum e Jorge sejam personagens históricos diferentes, o sincretismo religioso entre divindades africanas e santos católicos permitiu que a religião permanecesse viva, uma vez que o culto às divindades africanas era proibido no Brasil.

“Nossas mais velhas eram muito sábias. Elas cultuavam essas imagens e deixavam o assentamento dos orixás por baixo do altar. Quando se chegava aos terreiros, viam as imagens dos santos católicos e entendiam que ali se cultuava o catolicismo, e não o candomblé”, explica a sacerdotisa.


Origem africana


Segundo a tradição católica, Jorge, o Santo, nasceu na Capadócia, na Turquia. Já Ogum, originalmente, era cultuado no território que atualmente corresponde à Nigéria – a mais de 7 mil quilômetros da Península da Anatólia.

Na África, Ogum é o ferreiro dos orixás, ligado à guerra e à agricultura. Em algumas lendas, aparece como uma das primeiras divindades a chegar à Terra, o “Ayiê”, vindo do “Orum”, o Céu, para a criação. Noutras, Ogum foi humano, assim como São Jorge.

“Ele é cultuado na cidade de Irê-Ifé. E sim: Ogum teve vida terrena. Até hoje, em terras iorubás, existe ainda o lugar onde disseram que Ogum sumiu”, diz Preta. “Também era um grande guerreiro, um grande provedor, porque as ferramentas dele serviam para o plantio, para alimentar toda a sua comunidade.”

Já o pesquisador e historiador Luiz Antônio Simas, que é iniciado no culto a Ifá, uma religião tradicional africana, explica que história e mitologia se misturam quando se trata de biografias de orixás.

“Você tem mitos que o colocam como um orixá anterior à criação do mundo. Por outro lado, há mitos em que ele é esse personagem histórico. Teria sido rei de Irê, que, em certo momento, se divinizou. Um ancestral que se divinizou”, diz Simas.

O historiador explica ainda que o orixá é cultuado em outras religiões de matriz africana, como na umbanda, e ainda em outros países, como no Haiti e em Cuba.

A relação entre Ogum e a agricultura, no entanto, se perdeu por conta da escravidão.

“No Brasil ele vai perdendo essas características. E é normal que perca! Porque a agricultura, na história da escravidão, está ligada ao horror do cativeiro”, complementa Simas.


Associação com São Jorge não é regra


Nem todos os fiéis do ferreiro dos orixás o associam ao Santo Guerreiro. Nos cultos da Bahia, por exemplo, São Jorge foi sincretizado com outra divindade, Oxóssi. Mas, para Simas, em nenhum outro lugar a relação entre Ogum e São Jorge se estreitou tanto como entre os cariocas.

“Ogum encontrou São Jorge numa encruzilhada no Rio de Janeiro.”

As feijoadas


Ainda que São Jorge e Ogum sejam celebrados com feijoadas , originalmente esta não era uma comida oferecida ao orixá.

"Aqui no Brasil, as pessoas as pessoas têm esse costume de fazer feijoada para Ogum. Porém, no continente africano, a comida que a gente oferece é o inhame-cará. Também se oferece o feijão torrado”, explica Preta Lagbara.

Não se sabe o porquê da associação entre um dos pratos mais tradicionais da gastronomia brasileira e o orixá da guerra.

Mas Simas arrisca: “Existem hipóteses para isso, desde a comida que te dá força, até o fato de o feijão ser um alimento rico em ferro, e Ogum é o orixá do ferro. É a diáspora que faz com que a feijoada seja uma alimentação votiva de Ogum”.

‘Ogum já jurou bandeira nos campos de Humaitá’


Outra religião que cultua Ogum é a umbanda. Diferente do candomblé, e de outras religiões de matriz africana, a maioria dos “pontos” (cânticos para louvar as entidades) é entoada em português. Alguns deles associam Ogum a um lugar chamado Humaitá.

Alguns exemplos:

“Ogum já jurou bandeira nos campos do Humaitá. Ogum já venceu demanda, vamos todos saravar”
“Caboclo mora na mata, Ogum lá no Humaitá. Xangô mora na pedreira, e a sereia lá no mar”

Humaitá é uma palavra de origem indígena. O IBGE, ao explicar o significado do nome – que se refere também a uma cidade no Amazonas –, o traduz como: “a pedra agora é negra”.

Mas o Humaitá citado nos “pontos” pode, na verdade, se referir à Fortaleza do Humaitá, local estratégico na Guerra do Paraguai. Depois que as tropas brasileiras tomaram o forte, o exército pôde avançar sobre os então inimigos paraguaios.

“A guerra do Paraguai é uma guerra em que a infantaria brasileira, a linha de frente, é muito marcada pela presença do negro. Existe uma fortaleza do Humaitá, que é vista como concretude, em que os negros brasileiros lutaram sob a Guarda de Ogum. Mas ela acaba ganhando uma dimensão também mística de um território do invisível onde essas espiritualidades estão também atuando”, explica Simas.

A redação do G1 conversou com o doutor em história André Toral, autor de uma pesquisa sobre a participação negra na Guerra do Paraguai. Ele explica que, ainda que pessoas escravizadas correspondam a cerca de 4% a 7% da infantaria brasileira no conflito, a maioria dos soldados era de negros, mesmo que libertos.


“Os escravizados podiam participar da guerra como ‘substitutos’. Eram aquelas pessoas que os brancos ricos mandavam para a guerra para lutar em seu lugar. Se o cara era branco e rico, ele poderia mandar os escravos dele”, revelou Toral, que concorda com Simas quando se trata da memória acerca do episódio da tomada do Humaitá.

“O Humaitá foi, sem dúvida, a mais sangrenta posição que o Brasil conquistou. O Humaitá tem uma memória nesse sentido. Não é patriótico. É de sofrimento. É uma memória de dor”.


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